Um espetáculo neural na avenida

O ditado popular já adianta: “Duas cabeças pensam melhor que uma.” O Carnaval, porém, leva essa ideia a outro patamar. Na avenida, duzentas, mil, até mais de três mil cabeças se tornam uma só, com um objetivo comum: apresentar um espetáculo que as conduza à vitória.

Não sou sociólogo, historiador ou crítico de arte e música, mas já fui ritmista e sou neurocientista. É dessa experiência que falo. Quero destacar um fenômeno que, na minha opinião, é subestimado: o espetáculo neurocognitivo e social que é uma bateria de escola de samba.

Somos “animais sociais”, como diria Aristóteles. Por mais que você faça charme e diga que não, sinto informar: somos, sim. É verdade que as relações sociais mudaram com as redes digitais, mas a interação presencial segue viva, ainda que esporádica. E essa convivência carrega efeitos diversos: agressões, conexões, amor, amizade, inveja. Tudo isso nos interessa, mas um aspecto em particular me chama atenção: o fazer musical em grupo.

Em cerca de 200 mil anos de existência da nossa espécie, há indícios de que fazemos música há pelo menos 60 mil anos (no mínimo), e boa parte desse tempo em conjunto. Claro, as formas de produção musical e as interações sociais mudaram, mas um vestígio contemporâneo potente dessa prática está nas escolas de samba.

Para entender a complexidade desse fenômeno, imagine o seguinte desafio: coordenar duzentas ou mais pessoas tocando oito ou mais instrumentos de percussão, sem ensino formal de música, sem partitura, valendo uma nota decisiva para a vitória da escola do coração. Essa é a realidade das baterias do Carnaval paulista e carioca. Elas reúnem mais de duzentos integrantes, dos quais aproximadamente 98% não têm formação musical acadêmica.

Os ritmistas aprendem na própria escola. Alguns praticamente nascem nela e absorvem tudo por “osmose”; outros frequentam escolinhas e oficinas ministradas por professores que, muitas vezes, nunca viram uma partitura. O resultado? Um dos maiores espetáculos rítmicos em grupo do planeta.

Qual seria, então, o meu ponto? Apenas eu acho curioso que trezentas pessoas, sincronizadas ritmicamente e socialmente, executando um samba em altíssimo nível, sem ensino formal de música, conciliando trabalho e ensaios, sejam tão subestimadas? Tenho minhas suspeitas sobre os motivos, mas prefiro poupar meu estômago.

Fato é que o fazer musical em grupo é estudado há anos, e seus benefícios são amplos, principalmente no campo social. Empatia, cooperação, afinidade e até redução do estresse estão entre os ganhos conhecidos. Mas o problema é que a maioria desses estudos analisa grupos pequenos ou orquestras, onde a maioria possui conhecimento musical formal. E nas escolas de samba, quais seriam os resultados? Morro de curiosidade.

Pode até haver um estudo ali, outro acolá. Mas considero muito pouco para a grandiosidade do evento e seu simbolismo para o Brasil. O comportamento musical do brasileiro (seja ele musicista ou não), tocando música brasileira, é pouco explorado. E, com isso, esses cérebros seguem sendo, em certa medida, “ignorados”.

Nos próximos dias, iremos presenciar um fenômeno pouco compreendido do ponto de vista neurobiológico e que, talvez, possa trazer muitas respostas sobre como conviver em sociedade nesta era. Não à toa, chamamos os membros de uma escola de samba de comunidade. Por fim, apesar dos pesares, uma coisa é certa: o “animal social” fará, mais uma vez, um espetáculo grandioso na avenida.